quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Subcultura e o neopentecostalismo brasileiro

Por Cândido Mendes


A história da subcultura nos países subdesenvolvidos vive de uma dinâmica de desgarre, de frustrações e sobressaltos de um quadro histórico desamparado da consciência crítica; de inércia crescente das elites instaladas e de crescimento vegetativo da população no fluxo dos eixos migratórios, tangidos pela busca de oportunidade de trabalho.

O evento evangélico recente colhe essa nova decantação social em que se desenraizou o apelo matricial da Igreja Católica, e vinga uma convocatória às satisfações imediatas das expectativas coletivas, de retribuições simbólicas que permitem a acolhida eletrônica de massa e o salvacionismo de auditório. Esse evangelismo colhe a marginalidade errante do país, num simulacro da liturgia católica, mas na tangibilidade de retribuições, nas interações de reconhecimento comunitário. Desde os seus bispados ostensivos – em confronto com a modéstia do pastoreio luterano – até o mais solene e elaborado dos dísticos, seus letreiros pateticamente góticos, buscando um intemporal do recado, e de sua convocatória em nossos dias.
Nas faixas exaustas de destituídos em toda a América Latina, despertaria assim um chamamento, como o evangélico é um fenômeno estrito da nossa subcultura e da sua exploração como um dado da mudança brasileira, no empreendedorismo desenvolto da igreja do bispo Macedo e similares. Nesse quadro crítico, estão nos neopentescostismos denominações como a Universal do Reino de Deus, o “Evangelho Quadrangular”, “Deus é Amor” e a “Casa da Bênção”. Esses comportamentos se distinguem do empenho das demais redes particulares de ação tão fecunda e consequente no avanço da dignidade humana entre nós. A Universal vai à convocatória da fé num país de destituição radical, como uma commodity literal, a ser vivida, nas suas compensações simbólicas imediatas, e na reiteração quase que terápica de suas certezas.

Esse protagonismo sintetiza as complacências de uma subcultura no campo da crença que a desses autodenominados pastores, da igreja do bispo Macedo, sem qualquer explicitação de suas credenciais, alinhados pela repetição de seus formulários, no mais elementar das prédicas, entoados do Amargedon, periódico dos estádios, à reunião enfarpelada nos seus templos. Obedecem à retórica de um congraçamento do curandeirismo da alma, que não chega, sequer, a precisar dos lances de uma terapia de grupo, que marcaria, por exemplo, o evangelismo dos grupos desvalidos nos Estados Unidos.

Historicamente, a pregação de Edir Macedo remeter-se-ia aos pastores do Deep South e às “opções por Cristo” nos estádios americanos. E é de imediato que ela ganhou extrema criatividade, no trinômio de “pregação, sideração e controle”, pelo qual esse evangelismo emergiu como fenômeno genuinamente brasileiro nas culturas de orla, ou de marginalidade, do país dos excluídos.

O evangelismo se concentra numa tônica que é, de fato, a do anúncio da assistência divina direta, para além, inclusive, de qualquer escatologia de vinda do reino, traduzível na mudança da situação imediata, de opróbrio ou destituição. Nada de comum nessa pregação acomodatícia, inclusive, à Teologia da Libertação e de um profetismo prospectivo que acontecia paralelamente no catolicismo brasileiro.

Terapia e possessão do imaginário

O neopentecostalismo do bispo Macedo no Brasil descarta toda experiência comunitária pela presença reiterativa, na batida do cantochão, de uma militância elementar, que prescinde de qualquer rito iniciático ou leitura interior. A vivência da esperança se troca no incitamento das palavras de ordem, e todas elas da convocação à presença e ao bordão-chamamento de Jesus, como tentativa vocabular, que extravasa da ladainha católica para a possessão verbal obsessivamente reentoada. Só se interrompe num transe pelas próprias palavras de ordem em que o cerimonial religioso se cumpre, na presunção da sua saciedade, a jamais superar a disciplina de seu gestual primário. E é como espetáculo, também, rigorosamente administrado, que se cumpre essa liturgia básica das rações outorgadas ao seu imaginário, e do ritual das curas das interseções do sobrenatural; no resultado, ou na programação rígida de seu desfecho, ou ainda na premissa da credibilidade limite indiscutível, nas aparições demoníacas à hora certa.

O rebanho, assim cantonado, verte-se à disciplina dos deveres, ao óbolo obrigatório e fica como o laço ostensivo de seu sacrifício por definição irrenunciável, e a permitir a tranquilidade econômica da Universal. Não se trata mais da espórtula em que a Igreja, por demais instalada, permite a liberdade da coleta católica na dádiva da missa.

Cura; sideração; exorcismo

O que importa, sim, é o valor siderante do possível contato direto entre o aflito e Deus, traduzido no espetáculo continuado das curas, a que deve dar lugar toda reunião da Universal. O hinário se contrapõe imediatamente às gratulações e aos agradecimentos dos assistentes, no entrecortar entre os améns, as citações trituradas, à catadupa, de versículos bíblicos e o entoar da gratidão pelo miraculado da hora, acompanhado de todo um coro ad hoc dos assistentes.

O contágio é instantâneo, e se faz todo no hinário ovante e gratulatório que é o do sursum dos circunstantes. Não há discurso, ou raciocínio, ou, literalmente, sessões de interpretação conjunta, ou de reflexão sobre o conteúdo bíblico. Ele é todo um despejo de roldão da palavra, sinalizada exatamente pelo seu hieraticismo, de que o pastor é um servidor orante, mais que um intérprete do seu conteúdo, ou de qualquer didática genuinamente apostólica da sua aplicação.

Não se trata de colocar o destituído num imaginário opulento de participação do evento de Cristo, ou da espetaculosidade continuada do Novo Testamento. Mas da sensação, tão cutânea quanto irrefugável, de se estar diante de um milagre iminente, da cura em que é, sobretudo, o sentimento de merecer-se aquele momento o olhar rigorosamente intuita personae de Deus, que se torna incomparável ao resgate da autoestima do beneficiário da graça e da sacramentação dos améns à sua volta.

No ápice de todo esse espetáculo estão, por força, para além das curas, os exorcismos. E não se economiza no cerimonial, e na coreografia pesada, com resultado simultâneo, de domesticar o estarrecimento, e exigir, até, uma pontualidade rotineira, no que seria essa convocação do demônio frente à plateia dos crentes. Tal como se, entre a cura esperada e o seu clímax, se mantivesse um contínuo do espetáculo, em que o fluxo todo da interação, no aponte do milagre e seu agradecimento, passasse à disciplina do escarmento do demo domado.

Na prova da frequentação do sobrenatural, de todo retirado de qualquer transcendência, como espécie de assinatura repetida, assenta-se o campo de crenças em que se baseia a Universal e a ponte que abre, pelas mãos e os gestos dos pastores, com um mais-além desse cotidiano paupérrimo. É o do vale de lágrimas transformado em feira de prodígios, a que o comparecimento programado do demônio empresta a reiteração continuada da credibilidade, em todo esse domar-se pela docilidade do abominável ao látego dos pastores do Reino de Deus.

O chão da cena se torna cada vez mais a do espetáculo sovado, todo suprido pela cantilena gratulatória. Da trívia, trivialíssima, das curas, e do mesmo amém que as consagra, até a pontualidade rigorosa da expulsão do espírito impuro.

A fidelidade do povo à Universal se consolida, pois, toda entre o performático continuado, e exigido pelo rito do espetáculo, a tangibilidade das contribuições e a prática cada vez mais intensa dos devassamentos da alma, coram populo. Não há confissões, mas estímulos aos crentes para que abram o coração em público e façam da proclamação das suas ditas misérias ou vergonhas um testemunho do advento da cura espiritual. Essa, dos testemunhos da hora que aprisionam tal como criam uma espiritualidade promíscua nascida das comparações das narrativas e de uma adesão estridente aos receituários da alma.

Missionarismo e mimetismo

É também desnecessário salientar o quanto a corrente da cura nas assembleias não vai só à espórtula compulsória de sustento da igreja, mas à absoluta fidelidade à palavra do pastor, no que comande as ações, no corrupto mundo dos homens e, sobretudo, no exercício do voto.

A Universal, por outro lado, adotando por inteiro como sua menagem espiritual a virtualidade do universo mediático retratou, pelo mesmo espelho, a sua organização na réplica do aparelho e da visibilidade institucional da Igreja Católica. São os bispos os apóstolos dessa colegialidade, tão nítida quanto difusa, na ambiguidade procurada do pastoreio desse evangelismo. Sem explicações a dar; peremptória no aconselhamento, em aparência compassiva, como o dos consultórios sentimentais; solene em qualquer circunstância, refletindo muito mais que a acolhida do fiel à reiteração da distância com o pastor. Nem esse, via de regra, consegue chegar mais ao coloquial do contato, tanto é um vocativo imaginário que soleniza o dirigir-se ao outro. A continuidade do discurso é de um versejar à distância, quase que em eco de uma impostação inevitável – com tropeços, pausas, mudanças de registro – do arcano bíblico, no que, afinal, se torna uma liturgia remota, a cercar os fiéis.

Os vocativos quebram e reaglutinam esse linguajar, numa surdina sempre, de como se entende a palavra das Escrituras, ou o levantar de voz nesses páramos, em toda a passividade do rebanho. Pastores ou bispos, sempre cativos desse cenário virtual, não falam dos degraus de pedra, de altares ou púlpitos, mas já diante da população mediática, sobre a qual investem com o desatavio e o monocórdio da litania.

No papel que desempenha, hoje, a Universal, define-se o avanço no controle da coletividade pelo anúncio evangélico. Neles, o anúncio, refeito ao profetismo doméstico, tão sumário quanto ameaçador, instala-se na passagem, da deferência clássica devida aos pastores, ao misto de temor e veneração curandeira, de uma relação de dependência buscada a cada lance interativo.


Conservadorismo e mudança

Não se trata só, entretanto, de definir esses jogos de correspondência, mas de atentar de que forma o laivo religioso repercute nesses grupos, em tom de uma política pública apontando para a mudança ou o conservadorismo. O lineamento geral é do extremo da conduta ainda típica de um atentismo de clientela, em que a tônica do voto é a de obter, em contrapartida, vantagens institucionais ainda das igrejas, como um aparelho de fruição de favores específicos de seus dirigentes.

Não é possível encontrar-se uma correspondência entre essa mensagem neopentecostal e a alteração das estruturas sociais vigentes. Nenhum vento da reflexão católica, especialmente após a lufada do Vaticano II, levando a algo de parecido com a opção preferencial pelos pobres, ou a ideia de poder a estrutura social ser objetivamente contrária à promoção dos homens. Nem se registra o aponte de uma política de rebalanceamento das condições mínimas de acesso do povo de Deus aos bens coletivos, da renda ao acesso aos serviços sociais ou assentamento da terra.

Logra-se, sim, uma negociação, via de regra intuita personae, de representantes localizados dessa bancada, em função de benefícios para suas igrejas, em que assume capital importância a política evangélica na concessão de canais de televisão, ou facilidades fiscais na importação de equipamentos, ou na clássica demanda – em que se associam as deputações católicas – por atestados de filantropia e por outras vantagens fiscais.

O contrabando da prosperidade terrena e o mais-ser dos homens

No ideário global, frente às condições de bem-estar coletivo, ou de relembrar a promessa do Reino de Deus, as denominações do evangelismo de massa adicionam a ortodoxia da pregação de Cristo ao compromisso classicamente protestante da garantia da prosperidade nesse mundo. É como uma passagem à cultura saxônica, e à identificação weberiana do justo como o próspero no mundo, ficando a riqueza como sinal do placet divino ao cristão assim justificado aos olhos do Criador.

Cada vez mais essa prosperidade objetiva se soma ao ementário milagreiro, sem que se faça qualquer distinção entre obtenção de condições de bem-estar coletivo, condizente com a lição libertadora do Evangelho, de par com o bem-estar na vida transeunte. Ou seja, com o manancial da abundância de bens crassamente materiais, tal como se estendesse à orla do Brasil da marginalidade, e da audiência da Universal o mesmo ideário dos Robber barons americanos, ou do impulso à justificação pela prosperidade material, característica do nervo puritano responsável pela opulência dos Estados Unidos.

O que importa, nesse particular, é hoje saber-se, na linha do impacto, até para além da mensagem, de que forma esse evangelismo, passado das liturgias hirtas das igrejas à bacia das almas do pastoreio eletrônico, repercute no inconsciente coletivo brasileiro; concorre, ou não, para a sua promoção; é, pelo seu poder de contágio, alavanca também de um possível mais-ser do homem todo e de todos os homens, em que, afinal, o impulso básico do cristianismo não tem gentios, mas congrega, no apelo de Paulo VI, todas as fés à Boa Nova indemolível da maior humanidade, aqui e agora, do povo de Deus.

Indiscutivelmente, na receita do miraculado, no amém do coro de fiéis, na intercessão ad hoc de cada cura no cuidado e no afinco do pastor, o crente se vê reconfortadíssimo na sua vivência de pessoa. Sai de toda condição de ser derelicto, ou imprensado na massificação de todas as abjeções, de toda entregue à inércia do cotidiano, a seu cinzento e a seu perder-se de viver, no anonimato, em que a quebra da espera é, ao mesmo tempo, a necrose da esperança.

Nessa cura, tantas vezes simulada, no faz de conta dessa intercessão, tudo é verdade no gesto. Ou na ritualística de especificação de reconhecimento e ressalto. De terapia, pois, inegável, de uma personalização do beneficiado que soma, muitas vezes, como uma explosão do reconhecimento íntimo, em bem da dignidade escalavrada e recuperada do crente, assim reconhecido na assembleia de seus iguais.

A certeira prática da autoestima

As assembleias-terapias da Universal são todas indiscutivelmente lugares do egrégio, ainda que fugacíssimo, tanto quanto curas e exorcismos, verdadeiros, ou não, assimilam-se no que importa ao levantamento interno do ego, que é o cerimonial no que importa ao levantamento interno do ego, que é o cerimonial à ribalta enorme, a quebra entre um antes e após, no momento de um indiscutível sursum. Em cada um desses améns e desse olhar para o alto dos oficiantes do culto, repercute a mesma imensidão dos estádios de Billy Graham, e do gesto dramático por excelência, protagonizador de ruptura e reinauguração – que é o passo por Deus. É quando se ponteiam, um a um, no cenário enorme, a vontade de um renascer em Cristo, na prodigalização de uma outra vertente batismal, que é o simbolismo já, no espetáculo de massa, da ruptura do corte entre um antes e um depois, no mofino da vida, da marginalidade ou das contradições, na pobreza de eventos – em que, de toda forma, se articula uma possessão do futuro pela vontade dessa decisão fundadora.

Dentro das liturgias de engaste – desse momento pleno – que pode ocorrer a qualquer um e que se promete a todos –, na iminência e no advento do milagre –, força-se o ritual da retribuição. Essa que se exprime pelo óbulo, mais que pelas meras espórtulas, tão mais insuscetíveis de quebrar a cadeia do dar em dinheiro a que cada um se compromete, e tanto mais o cumprem os fiéis quanto mais parcas são as suas rendas, ou dramática a sua miserabilidade.

O mais importante, entretanto, hoje, é saber-se qual é o registro final, dentro de uma avaliação do quadro da destituição brasileira; do limite da marginalidade, do encontro do outro; da cultura do medo, a decidir-se sobre a do egoísmo; do inenarrável das distâncias do país do status quo. Como, afinal, estão obrigados a convergir os anúncios na matriz evangélica, uma espiritualidade como a do pós-Vaticano II, em todo o seu enorme trabalho dialético da Igreja versus populo. E o que possa ser, na aridez desse solo, de todos os espantos e de todas as prostrações, o missionarismo mediático, inseparável de toda economia pro domo sua, que se substantiva também – no trato da destituição social?

Por linhas travessas, o pastoreio eletrônico e o da igreja na voz dos seus pastores convergem num jogo que não é de soma zero. O desvalimento é tal – em terra de desolação, como Jacarezinho, Vigário Geral ou os acampamentos de lixo da Baixada – que só pode emergir um efeito, in bonis, do que já é tal, por chegar a tocar o abissal da destituição. Soma-se numa mesma cadeia o quase nada, ou o muito, ou o feito do cálculo, no gesto que interrompe o abandono, seja por figuração ou efetiva chegada ao outro.


O preço do consumismo da alma

São múltipas as formas, os estratos e os graus dessa enorme terapia ou didática da toma de consciência, que é o nervo de qualquer política de promoção social, venha de qualquer quadrante. Toda busca hoje dos “sinais dos tempos” encontra as pontas de um mesmo fio, frente ao peso morto da inércia coletiva que afunda toda arquitetura de um mais-ser da modernidade.

A contribuição no culto do bispo Macedo é inescapável, feita coram populo, nesse coletivo massageante da esperança laicizada da religiosidade, mas em reconhecimento instintivo do clamor dos destituídos. É significativo que esse evangelismo se tenha transformado no contraponto da outra alternativa em que, num país subdesenvolvido, desperte a subjetividade do excluído, na ruptura de exploração radical de um viver alienado, imerso no inconsciente coletivo. Tanto esse evangelismo existe exemplarmente no Brasil como só no nosso país acordou, no mesmo quadro de desvalimento, o PT enervando-se de imediato de um protagonismo político, para superar uma condição de vazio social, sem acesso ao mercado de trabalho, e condenado às condições vegetativas de uma subsistência errática.

Chama a atenção o quanto essa marginalidade crônica, amortecida na inércia envolvente, retarda a iniciativa diretamente política da ruptura. Ou, por outro lado, como se rende esse destituído à passagem da esperança à infinita transação da espera? No evangelismo de massa repete-se assim a terapia frente a uma mesma pobreza histórica e multissecular, em que o proletariado romano se domesticava à ração exata do pão e do circo.

É pela remuneração imperativa que o evangelismo do bispo Macedo captura o desmunido, na troca, pela paga imediata do dízimo, dos consolos sumários na repetição infindável do espetáculo, e na simulação da verdadeira comunidade brotada para a “toma de consciência”, trocada pela do prófugo, ou do anulado como marginal.

Enfim, o evangelismo político

Numa dinâmica agregada da subcultura brasileira, a organização da empresa evangélica pode ganhar a sua própria dinâmica e enveredar para novos graus de controle coletivo, e da previsível dominação subsequente. A religião mediática ruma para a presença política e a exploração de seu poder maciço sobre mentes e almas e, portanto, intenções eleitorais, na transformação em força política unitária, em pleno aproveitamento das oportunidades de voto de uma democracia.

Tanto o PT manteve a transparência da primeira mobilização – e a decepção uma primeira entrada na realpolitik – como o evangelismo político está apenas na sua nascente, e abre dimensões até hoje insuspeitas sobre o que possa ser a fidelidade desses eleitores aos governantes que venham a escolher. Depara-se, por aí, um reverso tenebroso de todas as tertúlias e demandas da relação entre Igreja e Estado nos quadros das sociedades democráticas contemporâneas. Mantidas isoladas as expectativas do que seja de Deus e de César, o nível de interferência religiosa na política dar-se-ia sempre de maneira incidente, e no plano das chamadas questões mistas (matéria relativa à família e à educação), seus avanços e recorrências, cujo amplo e conhecido dossiê de reivindicações acomoda a Igreja Católica ao Estado leigo e seus poderes em nossa modernidade. O novo agora se marca pela conjugação inversa desses dois extremos. Cada vez menos tem a ver com a satisfação de interesses objetivos da militância da população evangélica, trazida ao voto e ao sonambulismo como massa eleitoral, para o estrito benefício de seus dirigentes.

O catolicismo, de fato, permitiu todo o intercâmbio aberto entre o poder e o rebanho no que entendesse como a sua melhoria na sociedade civil. O evangelismo do bispo Macedo se concentra nos benefícios simbólicos de estrito consolo de cada um, dissociando-se, por inteiro, de qualquer interesse de bem comum na conduta política, vendo nesta, apenas, uma rotina que se adiciona, neste elenco, ao projeto de poder que administra. Seu êxito é o de que acolhe os rejeitados do sistema, destituídos, por inteiro, de uma sensibilidade à ação de mudança, e entregues à ritualística dessa compensação. Os templos góticos da Igreja Universal e suas grafias heráldicas alongam um imaginário religioso saciado no seu horizonte, na estrita demanda dos ritos inalteráveis de conformismo coletivo. É por aí mesmo que uma síndrome da subcultura pode chegar a transações perversas – e talvez definitivas – com esse próprio sentimento de um “mais ser” e sua conquista, pela pessoa, como um protagonismo de crescente liberdade. Esse neopentecostalismo a troca, ao contrário, por um entorpecimento de toda reflexão coletiva, pela addiction mais grosseira da terapia religiosa.

Essa clara tensão interna no neopentecostalismo, com a chegada da Universal ao jogo frontal de poder, contrastará com toda a tradição do que a Igreja Católica, e especialmente a partir do Vaticano II, situa como uma efetiva política de desenvolvimento social nos países das periferias ou dos destituídos, de onde está hoje saindo o Brasil. O catolicismo brasileiro não se expande apenas nas áreas do seu enraizamento multissecular, como as do Nordeste e da nação rural, mas também no país que saiu da marginalidade, hoje, com o “povo de Lula”.

O trabalho da Pastoral, na sequência da Teologia da Libertação e do profetismo de D. Hélder, é hoje o responsável pelo maior viço comunitário da nossa mobilidade social, e pela tomada de consciência cidadã para a mudança. Esse ímpeto continua na liderança que a Igreja mantém na busca do ecumenismo e, exatamente nele, e sem o proselitismo intransitivo das Universais, no avanço de uma plataforma dos direitos humanos, ou de uma visão ecológica, subordinada à prioridade da luta pela justiça social e à expansão dos movimentos sociais.

Não é sem razão que o Programa da “Ficha Limpa” mereceu todo o apoio da CNBB, e a exigência da reforma política tenha, entre os católicos, toda a prioridade, em contraste com o conservatismo e situacionismo neopentecostal. Na grande toma de consciência, que é a marca, hoje, do Brasil que emerge, o clamor do Vaticano II continua, de par com o repúdio à riqueza concentrada e ao progressismo desatento ao salto do desenvolvimento.

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