segunda-feira, 29 de abril de 2013

Por que a tragédia de Boston nos comove e as atrocidades no Afeganistão e Iraque não?

Achei este texto no blog Noite Sinistra. De acordo com o autor da postagem no blog citado, ele foi retirado do Metamorfose Digital. O texto não foi submetido a revisões.

Segue:

Na passada segunda-feira, 15 de abril, a tradicional Maratona de Boston foi surpreendida por uma explosão que, até agora, deixou um saldo de 3 mortos, entre eles um garoto de 8 anos, e pouco mais de 100 feridos. A bomba explodiu poucos metros antes da linha de chegada, afetando tanto ao público que se encontrava nas imediações quanto alguns participantes da corrida.

As reações ao atentado foram variadas, mas sem dúvida as dominantes são o lamento, a condenação e o assombro temeroso. No entanto, como é óbvio, este sentimento não é unânime, e entre as opiniões adversas em torno do fato há um conjunto em especial que se distingue por comparar esta tragédia com outras que se vivem em outros países, em muitos deles cotidianamente e, o que é um tanto pior, provocadas por ações do governo americano. Concretamente citam, por exemplo, as mortes de crianças que acontecem por causa dos drones do exército dos Estados Unidos ou, em geral, de pessoas inocentes cujos falecimentos chegam as dezenas, em ataques ou atentados que lamentavelmente são periódicos e que de alguma maneira se encontram relacionados com a política exterior dos EUA.


No Iraque, por exemplo, no dia anterior à Maratona de Boston vários carros bomba explodiram em diferentes províncias do país, deixando como saldo 42 pessoas mortas e 250 feridos. Igualmente no início de abril um ataque aéreo da OTAN em Kunar, no leste do Afeganistão, provocou a queda do teto de uma casa com o consequente decesso de 10 crianças e 2 mulheres.

Esta comparação que responsabiliza os Estados Unidos por sua própria tragédia, constitui um tipo de versão simplista de uma mal entendida lei da causalidade. Se o assunto for analisado com um pouco mais de calma, podemos observar que comparar a dor de uma pessoa ou de uma sociedade com outra é, por dizer o mínimo, impossível, inclusive em termos filosóficos (acho).

Em qualquer caso, parece claro que existe um desequilíbrio entre as tragédias que se desdobram na opinião pública e, com maior profundidade, nas reações que estas suscitam: por um lado, de maneira um tanto confusa, temos mortes que se repetem frequentemente e, por outro, outras que ocorrem esporadicamente, ambas de pessoas inocentes em situações injustas, mas uma não gera a mesma resposta pública que a outra. Em termos gerais, as sociedades ocidentais desdenham o que acontece a milhares e milhares de quilômetros, tanto em um sentido literal, geográfico, quanto em um metafórico, cultural; e, por outro, lamentam profundamente o que de início parece mais próximo. Algo que acontece no Oriente Médio não parece ter o mesmo peso específico emocional que um fato trágico nos Estados Unidos.


- "Equivocado ou não, provavelmente seja a natureza humana, ou ao menos do instinto humano", escreve Glenn Greenwald no The Guardian.

Nesta oposição não deve ser descartada certo processo de colonização ideológica. "As ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época", escreveu Marx em alusão ao fato de que o sistema está desenhado para gerar uma base ideológica afim que, no efeito mais útil, reduz a probabilidade de questionamento. Se tendermos a considerar mais lamentável um fato em relação a outro, não é porque somos parte mais ou menos inevitável desta programação feita de ideias preconcebidas, que são potencialmente afins a um sistema que leva em sua essência o desejo de hegemonia e dominação? Lamentamos sobre o acontecido em Boston porque algo em nós está socialmente programado para fazer com que sejam nossas as tragédias dessa "classe dominante"? Trata-se de uma expressão da dialética do amo e do escravo feita para assegurar-nos a cômoda posição do escravo?

Por outro lado, como se tratasse de uma fotografia, igualmente vale a pena considerar o contexto, ampliar o horizonte e perguntar-nos se no fundo a disparidade das reação também está animada por certo marco no qual uma ação parece mais tolerável ou justificável do que a outra. As mortes no Iraque ou Afeganistão, provocadas por "terroristas" ou por exércitos estabelecidos, parecem-nos menos graves porque o mal tem na época moderna e dentro da racionalidade cartesiana um aspecto totalmente normal, banal inclusive, burocrático e inercial: a maldade como um procedimento e um trâmite, como algo das tantas coisas que têm que se fazer. Este é o sentido de um bombardeio no Afeganistão: um dos tantos trâmites realizados na vida cotidiana do homem moderno ocidental.


Do outro lado, um acontecimento como o de Boston, ocorrido em circunstâncias diametralmente opostas -pacíficas, festivas, harmônicas e, em geral, próprias do "homem de bem comum"- parece descobrir a faceta menos domesticada desta potência, aquela relacionada com o imprevisto e o fatídico, contra o qual o ser humano, em um impulso quase metafísico, busca se rebelar. No entanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente, é inevitável pensar que o fato obedeceu a um plano, a um cálculo, mas um que saiu dos procedimentos estabelecidos e aceitos. Não se trata de uma ação de guerra, planejada, senão do mal em si, um que talvez queremos crer irracional, mas também é, a seu modo, profundamente racional, só que nascido no terreno dos anormais. E talvez esta contradição do pensamento também influa nas reações suscitadas.

Outro fator que seguramente intensifica a reação da sociedade, ao menos nos Estados Unidos, é a propaganda da chamada "guerra contra o terror", onde uma ameaça por momentos real, mas geralmente ilusória, pulula sobre os cidadãos, tornando indispensável contar com um estado de vigilância interno e um aparelho bélico em massa repartido por todos os cantos do mundo. De novo Greenwald:

- "A história deste tipo de ataques na última década foi muito clara e consistente: são explosões para obter novos poderes governamentais, incrementar a vigilância e despojar as liberdades individuais".


Este estado que poderíamos descrever como de paranoia estratégica, faz com que imediatamente brotem culpados na mente dos cidadãos e na mídia: terroristas árabes, os homens maus. A Fox News, por exemplo, ficou escandalizada ante a omissão da palavra "terrorismo" na mensagem de Obama à nação. A rede do ladino Murdoch está pouco se importando que falar de terrorismo faz com que automaticamente se imagine um grupo de fundamentalistas árabes. Ou seja, o terrorismo mais perigoso provavelmente seja o ambiente mediático e linguístico no qual vivem muitos cidadãos nos Estados Unidos.

Por último, também não podemos eludir outro tipo de colonização: aquela gerada pelo império da imagem. A inundação de fotografias, vídeos e demais relatos gráficos sobre os fatos de Boston, tão característica de nossa época, é surpreendente em comparação com o laconismo dos recursos disponíveis com o que acontece nos países árabes. Em Boston há câmeras de vigilância e smartphones dispostos a todo momento para capturar o ocorrido. Não acontece o mesmo, digamos, em uma zona montanhosa do Afeganistão, de onde não temos imagens das tragédias cotidianas que possam repetir até ao cansaço e a náusea, mas se tivessem, mudaria em algo a opinião dominante que se tem a respeito?

Como se vê, o assunto não é fácil de elucidar. Nestas ações influem circunstâncias evolutivas, psicológicas e sociais, cada uma com seus próprios matizes. Talvez, para além das emoções que cada pessoa possa sentir pelo acontecido, nos ajude a refletir por que pensamos o que pensamos e que efeito tem, para nós mesmos e a pequena porção de mundo que ocupamos, pensar da maneira que pensamos.

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